O homem sem cafundó

Era um menino quieto, de fala mansa. Obsequioso com os mais velhos, tímido com os maiores e das meninas tinha verdadeiro pavor. Não sabia fazer muitas amizades, acho que desde sempre tive medo de perder o que era querido. Restava-me a reclusão. Refugiava-me, sempre que possível, em meu cafundozinho, lá onde minha cidade acabava e começava o mato. Mas antes do matagal havia uma vasta área desmatada, esperando o progresso que estava chegando. Algumas vezes, eu lá quieto, pensando e matutando sobre o tudo e o nada, e já vinham elas, as máquinas, terraplanando e removendo entulho ao longe. Cada vez que passava por lá, sentia que elas chegavam mais perto. No fundo eu sabia que meu refúgio seria destruído em breve. Eu me sentava em um morrinho do terreno e observava a mata ao fundo, mastigando invariavelmente um pedaço de capim. Aprendi ali que pensar é penoso. Meu cafundó foi onde lapidei a capacidade de refletir. Pensei, planejei toda a minha vida nele. Às vezes, estava a tempestade se armando, mas eu não arredava pé. Continuava pensando, continuava lá. As máquinas, afinal, também ficavam trabalhando, desafiando a tormenta que se aproximava rápido. Certo dia, cheguei à casa todo molhado, encharcado da chuva. E minha avó perguntou, com aquele ar mistura de indignação e dúvida:
– mas menino, onde é que tu andavas?
E eu, inadvertidamente honesto, dizia:
– ah vó, lá nos cafundó.

Mudei-me e não acompanhei a destruição do meu cafundó. Então, um dia, anos depois, em uma visita ao acaso, passei pelo emaranhado de prédios e lembrei-me de que ele ficava alí, bem debaixo da entrada principal do shopping center.

Constatei que agora sou um homem sem seu cafundó. E um homem sem cafundó é um homem sem âncora. Só quero agora me iludir pensando que tudo o que lá passou pela minha cabeça, tudo o que eu lá planejei ainda navega perdido em recônditos inexpugnáveis de minha memória. Recuso-me a acreditar que tenha sido destruído junto com o meu cafundó.

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